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Invernia, resgate em questão




A caminho, a caminho. Não consigo parar de pensar nesta única palavra desde a ligação para ambulância há dez minutos. Há uma garota dentro de um carro prestes a cair de um penhasco, a testemunha alegou que o vento muito forte foi o suficiente para arrastar o carro pela lama desde o quintal da grande casa até o penhasco de pelo menos dez metros de altura, uma queda que pode ser fatal. Na estação de inverno a dificuldade no socorro só triplica, há neves por todo lado, fazendo com que eu use toda minha habilidade no volante, o carro que normalmente é grande por ser uma ambulância, parece estar patinando em óleo de motor.

A grande casa se encontra na parte mais alta da montanha só para variar, a fumaça branca que sai pela minha boca demonstra o frio da noite mais gelada que vi na minha vida. São dez horas da noite, ontem neste momento tipicamente, eu estava em frente a lareira desfrutando de um delicioso chocolate quente. Hoje diferentemente estou metido em um plantão devida a falta do Rick, por causa da lamentável morte de sua esposa, descobriram que ela tinha câncer de pulmão porém já estava numa fase muito avançada. Os médicos estipularam que ela possuía câncer desde muito tempo, foi quando disseram, quero dizer ela disse que fumava desde seus doze anos de idade antes de parar aos vinte e cinco, quando conheceu Rick. Aquilo foi como uma pancada em seu emocional, sua esposa Suze não parecia ter o perfil de uma pessoa viciada. Rick não sabia que ela havia fumado por tanto tempo. Assim começaram um tratamento, porém já era tarde.

Rick se tornou pai solteiro de dois filhos, é um grande amigo meu desde que começamos a atuar como os salvadores, que é como nós dois nos intitulamos. Sempre me preocupei com as pessoas, quando pequeno, sonhava em ser um super herói, salvando as vítimas dos monstros horríveis. Aquelas presas entre os escombros de casas queimadas, aonde minha imaginação me levava. Na adolescência me viciava em séries policiais, investigações, e tudo o que se pode relacionar com salvamento de vidas, mas principalmente os de médicos, por que nas séries eles tinham um papel muito importante, eles estavam sempre dispostos e preparados para qualquer coisa. Tenho 23 anos, e já estou em meio a toda esta adrenalina de correr o mais rápido possível para evitar a morte de alguém, sinto que meu sonho foi realizado e também sinto que sou capaz de dar a vida por alguém, desde que valha a pena, por que não vou me sacrificar por um bandido que pode matar minha filha, mesmo que eu não tenha nenhuma. Ainda continuo correndo pela estreita estrada coberta por grossas camadas de neve, parece impossível a passagem, mas sou movido pelo pensamento de não chegar a tempo, infelizmente sou muito negativo quanto a qualquer coisa. Então fico imaginando chegar à cena e presenciar o carro amassado contra as rochas, e tristemente fazer um relatório do ocorrido: "Garota morta devido ao acidente da queda do carro em um penhasco, próximo à residência Smith”... Apesar do frio, estou suando muito pela adrenalina. Mesmo trabalhando por dois anos, a cada corrida, quanto mais emergente, mais a ansiedade me toma. Fred esta ao meu lado, não falei uma única palavra com ele desde a ligação. Ele é meu parceiro de rotina há uma semana, preenchendo a vaga de Jason, meu ex-parceiro de rotina. Jason partiu para Boston tentar realizar seu sonho de se casar, me disse que conheceu uma garota perfeita no facebook e que vinham conversando há meses. Decidi dizer apenas para ele seguir seus desejos, mas na verdade acho isto a maior bobagem, o melhor modo de se conhecer uma pessoa é o contado direto, e ele esta se iludindo com essa ideia de que conhece essa garota. Arrisquei dizer que ela pode ser ele, mas Jason não deu à mínima e foi cegamente atrás de sua paixão. Enfim a grande casa despontou depois de uma curva estreita, me refiro a residência como grande casa por sua estrutura antiga, aquela casa que você olha e pensa "ual parece à moradia do Drácula". Apesar da minha preocupação, euforia e a adrenalina a mil, não posso deixar de admirar a grande casa, ela parece um monumento antigo com varanda cheia de vasos de flores, coberta por neves quase não se nota três cata ventos em cada janela que ao todo somam cinco, três na frente destacando a fachada e duas no primeiro andar. A escuridão da noite não permite uma boa visão, mas não é a primeira vez que a vejo, a sua pintura desgastada é de um marrom desbotado, o telhado todo coberto por uma massa branca de neve, tem seu formato inclinado em cascata, e há anos jaz duas gárgulas com marcas do tempo recebendo que chega. Envolta da grande casa há apenas árvores, que se assemelham a muros, elas criam um cenário de terror, a noite esta escura e o vento gela até a alma. Há alguns metros da casa está a empregada chorando desesperada. Na ligação para o hospital (que redirecionou para minha ambulância) ela disse ser a babá contratada pela família Smith, esta é a tal testemunha que nos emitiu a emergência. Derrapando parei o carro, Fred rapidamente começa a fazer os preparativos caso a vítima necessite. Ao descer do veículo logo a babá vem ao meu encontro:

-Policial, por favor, me ajude!

Ela deve estar totalmente desesperada para me confundir por um policial, tendo um grande carro com um grande letreiro escrito AMBULÂNCIA.

- Sou apenas um paramédico, você deve ser a babá.

Engasgando com as palavras, ela diz:


-Sim, me chamo Kelly. Ofegante ela continua.


-Venha logo, ela pode cair a qualquer momento.


-Ok, onde ela esta?


Sem responder Kelly começa a correr. Rapidamente ela da a volta na casa, dou uma olhadela para Fred, que me diz:

-Vá, estou logo atrás. Ele esta arrumando a maca. Assim avanço para além da casa, no lado dos fundos. Ao chegar conto apenas com uma branda luz vinda de uma porta aberta. Mas após uma densa nuvem ser levada pelo vento, percebo que é noite de lua cheia, que torna o suficiente para enxergar o carro a ponto de cair. Me pergunto por que Kelly não a tirou do carro, quando me aproximo sei a resposta. Uma única pedra impede a queda do carro esporte de quatro portas de não sei quantos quilos. Que se viesse acontecer resultaria em morte certa. O chão esta liso da mistura de lama e neve e é inclinado. Com um único movimento brusco, a pedra iria ceder ao peso e selar o destino da garota. Kelly esta a dois metros de distância do carro, chegando perto dela, começa a me dizer desesperadamente:

- Por favor, a salve, ela tem só oito anos e gosta de brincar no carro, ela vai morrer por minha causa. Eu sempre a deixo lá, não sabia que isto poderia acontecer. Eu disse para ela ficar lá quietinha para não cair.

A toco no braço a fim de mantê-la menos nervosa.

-Acalme-se irei resgata-la, agora fique aqui!

A deixo ali e avanço de encontro ao carro na beira do abismo. O vento não esta ajudando, parece aumentar a cada minuto. O carro por enquanto permanece imóvel dando a falsa sensação de que esta seguro com a intervenção da pedra. Fico a centímetros do carro com todo cuidado para não tocá-lo. Quando estou prestes a chamar pela garotinha percebo que nem sei seu nome, então bem depressa grito para Kelly:

- Como ela se chama?

Surpresa Kelly também grita:

- Elizabeth. Então me volto ao carro e começo a chamá-la, a pequena garotinha aparece rapidamente na janela da porta de trás. A sua respiração deixa a janela fosca, devido ao frio que cai cada vez mais impiedoso. Preciso agir rápido, começo a acenar para Elizabeth dizendo: - Fique parada, eu estou indo te pegar, tudo bem!

Ela se vira me dando as costas e não esta exibindo nenhuma emoção, só que fica balançando a cabeça jogando os lisos cabelos loiros de um lado para o outro. Me parece estranho, mas não posso perder tempo.

Quando o vento fica mais brando, me da maior segurança para abrir a porta traseira do carro e logo faço isto, mas surpreso vejo que ela não abre porque esta trancada por dentro. Começo a pedir para Elizabeth que ainda se mantém de costas: - Abra a porta, esta trancada. A sua reação me assusta quando começa a balançar a cabeça negativamente. Ela não quer abrir.

O vento presente novamente aumenta gradativamente num ritmo bem rápido, com medo que o carro comece a escorregar grito para Elizabeth: - Abra logo, o carro pode cair se você ficar aí vamos logo!

Ela continua a balançar a cabeça, enquanto isso Kelly espera apreensiva com as mãos juntas e os dedos entrelaçados próximo ao peito, só agora notei que ela veste apenas uma camisa vermelha e uma calça jeans, nos pés apenas sandálias. Ela esta tremendo, com o rosto todo corado, mas em nenhum momento pensou em colocar algo mais apropriado para aquela estação de inverno. Preocupado grito a ela já a uns cinco metros de onde estou: - Vá vestir-se com algo mais quente, pode pegar hipotermia. Fazendo uma concha com ambas as mãos em volta da boca ela diz: - Não saio daqui até que ela esteja bem! Com isso, me impulsiona a agir ainda mais rápido para salvar a garotinha Elizabeth, mais a babá Kelly. A garotinha esta brincando com um urso de pelúcia, totalmente a parte de toda esta situação, como se para ela não estivesse acontecendo nada. Tento chamar sua atenção batendo no vidro, mas de nada adianta, continua a brincar. Me pergunto porque Fred esta demorando tanto, então decido dizer para Kelly chamá-lo. Rapidamente ela começa a correr dando a volta na casa. Perdendo a paciência continuo batendo e quase berrando para Elizabeth abrir a porta, mas ela insiste em me ignorar, brincando e sorrindo. Ela tem oito anos, não deveria estar calma numa situação dessas e sim estar ao menos assustada, não entendo. Kelly regressa as pressas, chegando mais perto que da última vez, ofegante dizendo:


- Ele esta com problemas no carro, disse que precisa esquentar o motor. Batendo a mão na testa digo: - Droga me esqueci de manter o carro ligado. Não é a primeira vez que isto me acontece, numa certa noite este mesmo carro (a ambulância) parou de vez, eu estava sem celular, o rádio não estava funcionando, por causa da pane que matou a bateria, fui obrigado a andar por uma hora numa estrada sem nenhuma alma viva, ninguém para quem pedir carona até o hospital. Já que não posso contar com a ajuda de Fred, preciso pensar em algo e rápido. Então é neste momento que vem a ideia na minha mente, quebrar o vidro, é bruto mas não há opção nem tempo, não vou deixar esta garotinha morrer mesmo não querendo abrir a porta para salvação. O vento já está bem mais forte, abaixo para pegar uma pedra um pouco maior que meu punho, num movimento a luz da lua reflete na superfície de meu relógio novo chamando minha atenção. Olhando as horas vejo que se passaram 15 minutos desde que cheguei. É muito tempo, preciso agir. Juntando toda minha força, agarro com firmeza a pedra na mão direita e a lanço no vidro da porta da frente. Impressionado olho para o vidro com apenas rachaduras, então pego novamente a mesma pedra para mais uma investida. Mas ouço os gritos de Kelly atrás de mim: - Pare é o carro de meu namorado! Ouvindo isto e com a expressão de quem quer apedrejar alguém olho pra ela dizendo:


-Então você tem a chave?


- Não, esta com ele, há um bar não tão longe daqui, ele esta lá. Mas não estrague o carro ele vai me matar!


- Me desculpe, mas não há outra opção senão quebrar o vidro, Elizabeth não quer abrir. Pelo menos diga a ele que era caso de vida ou morte. Kelly começa arregalar os olhos apontando atrás de mim, no mesmo instante todo meu corpo gela quando me viro e vejo o pesado carro deslizando no chão lamacento de encontro ao penhasco, por instinto cravo meus pés no chão e avanço atrás do carro fujão. Ainda com a pedra na mão e segurando pelo para-brisa soco freneticamente o vidro rachado. Mais ou menos um metro e cada vez estamos mais perto da beirada. Elizabeth ainda brinca despreocupada enquanto sua vida e também a minha esta por um fio. Forço meus pés no chão com a inútil tentativa de atrasar o carro deslizante que continua seu contínuo e impiedoso percurso. Como numa câmera lenta, vejo as neves caindo, o vento como uma parede móvel empurrando o carro, os gritos de Kelly no fundo junto ao meu que chama desesperadamente pelo nome Elizabeth, que permanece lívida e calma, sua reação é o que mais me impressiona. Enfim as rodas traseiras perdem o chão, levando consigo todo o peso e pondo em prova as leis da inércia. Tiro minha mão do para-brisa no último segundo da presença do carro cinzento, com os seus faróis dizendo adeus pela Elizabeth. Como num filme assisto sua imagem desaparecer aos poucos enquanto cai de traseira morrendo junto a Elizabeth que ficará viva apenas na memória daqueles que a amam.



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